José Renato Nalini cria conselho popular que rompe
com tradição secular e aproxima a toga das ruas
O
Tribunal de Justiça de São Paulo rompeu com uma tradição secular da toga e
criou o Conselho Consultivo Interinstitucional para atuar como canal de
comunicação direto com a sociedade.
Com 23
assentos, dos quais 11 destinados a “cidadãos brasileiros natos, com mais de
35 anos, vinculados às universidades, institutos de pesquisa, imprensa,
associações setoriais e movimentos sociais”, o colegiado poderá dar
sugestões e recomendações inclusive sobre a melhor aplicação do orçamento,
direcionamento e uso de verbas do TJ.
A gestão
de seus próprios recursos é um tabu nos tribunais. Preparados e qualificados
para a ciência do Direito, os magistrados não têm nenhuma aptidão para
trabalhar com finanças, salvo exceções. Uma saída para esse impasse que
angustia a toga poderá ser o Conselho, imaginado e criado por José Renato Nalini,
desembargador presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Os
integrantes do colegiado não terão remuneração.
O próprio
Nalini vai acumular a direção do Conselho e do TJ, maior corte estadual do País
com 2,3 mil magistrados de primeiro grau, 360 desembargadores, quase 50 mil
servidores e 20 milhões de processos. “O Judiciário é o mais hermético dos
poderes”, adverte o desembargador.
Ao editar
a Portaria 8964/14 Nalini lançou o desafio de enfrentar o que já havia
identificado especialmente no período entre 2012 e 2013, quando exerceu o cargo
de corregedor geral da Justiça de São Paulo. “Inexistência de espaços de
diálogo orientados à discussão e produção de diagnósticos acerca de temas de
interesse da Justiça.”
Defende a
“democracia participativa” – embora flagrante a resistência de muitos de
seus pares -, como “imperativo da transparência, corolário do princípio da
publicidade”.
O
desembargador considera a necessidade de a cúpula da corte dispor de um órgão
consultivo e de assessoramento para a tomada de decisões que envolvam temas
sensíveis e de grande impacto institucional e social. Ele condena o modelo
arcaico da Justiça que privilegia a criação de novos cargos e novos tribunais. “É
mais cômodo continuar assim.”
ESTADO –
Qual a meta do Conselho?
José Renato Nalini: O Conselho é uma forma de fazer com que a
sociedade civil se interesse por um equipamento que ela sustenta. Um
equipamento que tende a crescer até o infinito. Estamos vivendo uma epidemia de
judicialização. Quase 100 milhões de processos no País. Temos mais de 800 mil
advogados, 17 mil juízes, 15 mil promotores, 6 mil defensores públicos, quantos
milhares de procuradores, de delegados de polícia, tabeliães, registradores
públicos. Há uma excessiva jurisdicização da vida.
ESTADO –
Como surgiu a ideia de abrir os destinos da Corte?
Nalini: O Poder
Judiciário sempre foi o mais hermético dos poderes, o mais distanciado, tanto
que aqui no Brasil não se discute muito a questão da legitimidade. A França tem
uma discussão recorrente, que o juiz não se submete ao sufrágio, então tem um
déficit de legitimidade. O nosso Judiciário, como poder da República, carecia
de um diálogo mais intenso com a sociedade.
ESTADO –
Na prática a sociedade civil poderá fazer sugestões ao Tribunal?
Nalini: O
Direito passou a ser um ingrediente diário do convívio e a única resposta que o
pessoal dá para os problemas é a judicialização, entrar em juízo. O Conselho
vai auxiliar a administração do Tribunal a pensar o orçamento, os
investimentos, a informatização, a intensificar a conciliação. Avaliar se as
opções que estamos tomando são as mais acertadas. É um diálogo com a sociedade
que se inaugura.
ESTADO –
Quem mais poderá compor o colegiado?
Nalini: O
Conselho terá cadeira para os demais poderes e também para OAB, Defensoria
Pública, Ministério Público, Polícia Militar, Polícia Civil, além dos 11
representantes da sociedade civil, de institutos de pesquisa, universidades,
por exemplo. É um colégio representativo de vários setores da lucidez para
ajudar a pensar junto. A grande surpresa foi que assim que publicada a
instituição do Conselho muitas entidades começaram a pleitear assento, querer
participar. A OAB, que foi solicitada a indicar um representante, mandou três.
É evidente que não vamos com isso substituir os órgãos de comando, mas a
administração será assessorada por um Conselho que tem representatividade para
trazer a voz da sociedade civil para dentro do Tribunal.
ESTADO –
Por que a Justiça sempre se manteve distante?
Nalini: O
Judiciário não tem a iniciativa da ação, só responde se for provocado. O princípio
da inércia contaminou a administração do Judiciário, que ficou parado no tempo.
É o momento de o Judiciário acertar o passo com a sociedade, dar uma prestação
jurisdicional mais rápida, mais eficiente, assumir as tecnologias. Não vamos
substituir os órgãos de comando, mas a administração será assessorada por um
Conselho com representatividade na sociedade civil. O juiz tem que se
conscientizar que hoje é um agente que tem de pensar nas consequências
concretas da sua decisão. Precisamos pensar aquilo que estamos fazendo, aquilo
que estamos decidindo.
ESTADO –
O Conselho pode contribuir para evitar o inchaço da máquina?
Nalini: Acredito
que a partir da existência de um colegiado que representa a sociedade, o
Conselho vai poder fazer propostas, por exemplo, de campanhas de
conscientização, comparando os números do Brasil com os números da comunidade
mais civilizada, mais adiantada.
ESTADO –
O Judiciário usa mal seu orçamento?
Nalini: As
grandes reformas não vieram, não veio reforma política, não veio reforma
tributária, não veio a previdenciária, como deveria ter, e não veio também a
profunda reforma estrutural da Justiça. Continua, por exemplo, a aposentadoria
com 70 anos. Estou expulsando todo dia aqui, e logo chegará a minha vez, gente
que fica pelo menos vinte anos, senão trinta, recebendo proventos integrais e
quantos outros eu terei que colocar no lugar ganhando a mesma coisa que ele
ganhava e continuará ganhando? Está havendo aparentemente um excesso de
investimento para um resultado que não é satisfatório. Por que chegam tantos
processos, tantas pretensões tecnificadas, repetidas tecnicamente perante o
Judiciário? Será que não temos outra forma de enfrentar a não ser fazer o juiz
se manifestar? Será que isso é bom para o Brasil? Acredito que essa é a
discussão que se legitima no momento.
ESTADO –
O Judiciário é alheio às ruas?
Nalini: A
sociedade está produzindo infrator cada vez mais jovem, mais novo. E nós vamos
combatendo os efeitos, sem investir adequadamente nas causas. O Judiciário não
pode participar dessa discussão? Há uma judicialização excessiva. Para nós que
somos de dentro poderíamos ter um pensamento confortável, eu recebendo o meu
salário, tendo funcionários para me servir e, a cada momento em que se pedir
uma vara, cria-se uma vara, cria-se mais um tribunal, mais uma Comarca. O
melhor dos mundos para o público interno. Mas será que isso é bom para o
Brasil?
ESTADO –
Por que chegamos a esse impasse?
Nalini: Será que
o brasileiro já prestou atenção no fato de o Brasil possuir faculdades de
Direito em número superior ao número de todas as faculdades que existem em todo
o mundo? Por isso somos a sociedade mais justa do planeta, pelo fato de
insistirmos tanto na formação jurídica? Ela é essencial, mas ela tem que se
traduzir num convívio mais justo, de menos desigualdade, de menos injustiça.
Estamos caminhando no ranking do encarceramento, temos 700 mil encarcerados,
inclusive em regime domiciliar que também tem status de preso. Somos o
terceiro, atrás apenas dos Estados Unidos e da Rússia. Passamos a India! Será
que as pessoas se dão conta de que um menor abrigado na Fundação Casa custa R$
9 mil por mês? Será que uma educação de primeiro mundo custa isso?
ESTADO –
O Conselho vai atuar em que área?
Nalini: É para
todas as questões administrativas. Sempre se pregou, foi sempre um ideal
teórico, a participação popular na administração da Justiça. Os dois únicos
exemplos que a doutrina mostra são o júri, que o cidadão faz parte, e a Justiça
Eleitoral quando você recruta o trabalho da cidadania para ajudar nas eleições.
Mas agora temos outro modelo, de repente pode ser alguma coisa que se institua.
Estamos em um déficit de diálogo com a sociedade porque o Judiciário sempre foi
um Poder que levou ao paroxismo a inércia, que é um princípio processual, um
princípio ainda relativo.
ESTADO –
Qual deve ser o primeiro tema a ser pautado?
Nalini: Vamos
fazer a instalação oficial do Conselho, que eu gostaria de fazer ainda em
junho, mas com a Copa, provavelmente deve ficar para agosto. A ideia é dar a
agenda para eles mesmos, o que eles sugerirem fazer, mas acredito que há muitos
temas a serem discutidos. Acho que a opção pela conciliação, a experiência dos
Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania. Um Centro equivale a
nove varas. É uma economia considerável para a sociedade que sustenta o
Judiciário e temos que disseminar essa prática.
ESTADO –
Qual a sua sugestão para dar rapidez aos processos?
Nalini: Estratégias
de aceleração da prestação jurisdicional, simplificação dos procedimentos,
enfrentar esse tema que os processualistas ainda não conseguiram definir. A
diferença entre processo e procedimento. Porque procedimento pode ser objeto de
legislação estadual, não conseguimos produzir uma lei que altere procedimento
por causa deste impasse. A gente vai acelerar, ah não, isso é processo, então
qual a diferença entre processo e procedimento? Temos que cobrar isso dos
processualistas, essa diferença.
ESTADO –
O Conselho pode opinar sobre o uso de verbas para determinada região?
Nalini: É um
colegiado para aconselhar, consultivo, terá a voz de uma representação bem
consistente, basta verificar os órgãos que estão participando. Não é uma coisa
inócua, acredito que o próprio Órgão Especial e o Conselho Superior da
Magistratura vão se pautar bastante pelo que o Conselho recomendar.
ESTADO –
Há resistência interna ao Conselho?
Nalini: A ideia
foi uma coisa na democratização. Acho que o grande passo que essa gestão pode
dar é a conscientização da sociedade em relação a um serviço público.
Judiciário sempre foi mais considerado expressão da soberania estatal, um Poder
da República que deve conviver em harmonia e de forma independente com os
demais Poderes do que como serviço público. Essa expressão serviço público
ainda causa um pouco de resistência entre os mais conservadores, e é muito
difícil o magistrado que é recrutado depois de um concurso severíssimo, uma
corrida de obstáculos com milhares de concorrentes assimilar isso.
ESTADO –
Por quê?
Nalini: Ele já
entra muito consciente da sua importância, aí quando você começa a frisar esse
discurso do servidor, que você é prestador de serviços e tem que prestar contas
à sociedade, não é todo mundo que aceita com facilidade isso. Acredito que uma
contribuição que se pode dar em uma gestão é fazer o Judiciário se auto
refletir, fazer um exame de consciência como serviço publico. Como está sendo a
prestação? Ela é eficiente, poderia ser melhor, dá para ser aperfeiçoada? A
prestação jurisdicional deve ser o que? Uma resposta que solucione o problema
ou que seja apenas uma resposta técnica ao problema? Quem é que fez um
levantamento para mostrar qual a porcentagem de decisões judiciais meramente
processuais, mas que não solucionam o problema que deu origem ao processo?
ESTADO –
Decisões judiciais não são suficientes?
Nalini: O
excesso de prestigio ao processo, que é instrumento de realização do justo e
não uma finalidade em si, pode ocasionar esse fenômeno de que uma grande
parcela das decisões não soluciona, às vezes até agrava o problema. Mas é uma
resposta processual que deixa o juiz mais conservador em paz com sua
consciência. Ele reflete ‘não sou tutor de pessoas maiores e capazes’. Questões
processuais podem inspirar decisão, mas não resolvem o conflito. É muito
importante que nós façamos com que o juiz se conscientize de que ele hoje é um
agente que tem de pensar nas consequências concretas da sua decisão depois de
proferidas. Isso está previsto no Código de Ética da Magistratura Nacional, que
o Conselho Nacional de Justiça editou em 2007. O consequencialismo passou a ser,
então, um vetor do controle de legitimidade de decisões. Precisamos pensar o
que estamos fazendo, o que estamos decidindo.
ESTADO –
Então, o papel da Justiça não é simplesmente aplicar sentenças?
Nalini: Nós não podemos esquecer que o
princípio da eficiência foi colocado na Constituição 10 anos depois talvez
pensando no Judiciário que, como administração pública, precisa ser eficiente,
isto é, dar uma resposta que resolva, não apenas uma solução técnica que deixa
o conflito ali às vezes mais agravado, que deixa a parte frustrada. O indivíduo
entrou em juízo mas não teve a solução, embora teve a resposta. O Judiciário
não pode esquecer que a Emenda 45 (reforma do Judiciário) explicitou um direito
fundamental que já era extraído do sistema, o inciso 48 do artigo 5.º, ou seja,
o direito a uma prestação jurisdicional célere, a questão de acertar os passos
com a sociedade que tem um ritmo que a Justiça de certa forma não conseguiu
acompanhar, embora haja toda uma tecnologia disponível.
ESTADO –
O modelo está esgotado?
Nalini: Todos
esses temas são do público interno, mas também do público externo. Se o modelo
não vier a ser repensado o Judiciário tem uma grande facilidade de crescer, em
mostrar que precisa de mais juízes, mais funcionários, e aí nós vamos criar uma
estrutura que dificilmente a sociedade terá condições de arcar com esse ônus
porque a criação vem em cadeia, em cascata.
ESTADO –
Como?
Nalini: Você
cria um cargo de juiz sempre pressupondo que vamos precisar de pelo menos uns
20 funcionários para atender a estrutura mínima para o funcionamento da Vara.
Aí o Ministério Público cria um cargo de promotor com mais alguns funcionários.
E precisa de mais defensor, mais estrutura, mais Polícia Militar, mais policial
civil. Tudo isso vai inchando a máquina. De repente você pode resolver os
problemas de outra forma também. Será que todas as questões têm que ser
remetidas ao Judiciário? Tenho sempre levantado essa questão, e não para
aliviar o Judiciário, reduzir o serviço da Justiça. É que se você começa a
considerar a Justiça um bem que é suscetível de ser convertido em uma bolsa,
bolsa-Justiça, então tem sempre um defensor, um advogado pro-bono exercendo a
Justiça gratuita para fazer com que as pessoas entrem em juízo.
ESTADO –
Qual a consequência?
Nalini: Com isso você desacostuma a
pessoa a protagonizar os seus interesses mediante um exercício de autonomia. Eu
tenho que saber conversar com meu adverso, sentar em uma mesa, dialogar, tentar
acertar as contas com ele, fazer acordo, que é transigir, mas também entender o
ponto de vista alheio. Caso contrário, ao invés de termos cidadania, teremos
uma população infantilizada, puerilizada, que para tudo precisa de um advogado
para entrar em juízo. O advogado é essencial na administração da Justiça? É,
mas a administração da Justiça não precisa ser a judicialização de todos os
problemas, pode ser um acompanhamento para uma tentativa de acordo.
O
Estado de São Paulo - Fausto Macedo e Mateus
Coutinho – 23/06/2014