sexta-feira, 20 de abril de 2012

Transporte metropolitano de pessoas sobre trilhos – o surrealismo paulista.



A discussão em torno da situação dos transportes sobre trilhos na capital e na Grande São Paulo tornou-se literalmente surreal.

Para pessoas como eu, que acompanha e participa diariamente do jogo da formação da opinião pública, do pêndulo dessa verdadeira guerra de versões, fica difícil imaginar que as coisas chegariam ao ponto que chegaram.

Projetos do sindicato, no sentido de ampliação da malha ferroviária da CPTM, foram desqualificados por representantes da empresa sob o argumento da falta de demanda. Ridiculamente, esses mesmos representantes não sabem, agora, o que fazer com o excesso de demanda, e dele reclamam, atribuindo ao volume de usuários a “causa” da incapacidade de atendê-los. Nossa sugestão de se criar um ferroanel metropolitano, como forma de evitar que usuários equidistantes das linhas passassem todos pelos mesmos pontos de estrangulamento, foi tratada como “provocação”. Estão, entretanto, criando um ferroanel para cargas, justamente para evitar o trânsito desnecessário delas pelas áreas centrais das cidades. Vale para cargas, mas não para passageiros, sendo que a lógica é rigorosamente a mesma. Uma ideia é “provocação nossa”, a outra é “acerto deles”.

Com a criação da Macrometrópole de São Paulo, falamos agora na capacidade de transporte para aproximadamente 33 milhões de pessoas, distribuídas em 39 municípios, 19 dos quais já atendidos pelos trens da CPTM. O ferroanel metropolitano permitiria atender aos 39.

Iluminados de plantão, incapazes de enxergar o evidente, apostam no planejamento urbano, não raro falando em levar empregos aos dormitórios ou estes aos empregos. Vamos, agora, deslocar empresas ou residências, de modo a que fiquem umas ao acesso fácil das outras, para que os trilhos continuem os mesmos, e nos mesmos lugares. Os incomodados que se mudem, na mesma lógica de que tem usuários demais, e não trens de menos. No último caso, o que se pode deduzir? Se os usuários não podem ser atendidos pelos trens, que procurem outro meio de locomoção. Danem-se, ou esperem.

Incentivam as pessoas para que não façam uso dos automóveis, implantam rodízios, falam em pedágio urbano, controlam tráfego de caminhões em certos horários e locais - com a finalidade de minimizar o caos do trânsito -, mas não se oferece capacidade de atendimento a toda essa gente quando ela corre para os trens, e ainda fala-se em “tsunami de usuários”.

Reclama o secretário dos Transportes Metropolitanos – e entendemos que com razão – que os governos municipais não fazem a sua parte. Não fazem mesmo. Prefeitos de cidades ricas como São Paulo, Osasco, Guarulhos, Santo André, São Caetano e São Bernardo não investem um centavo – com dinheiro próprio – em transporte de pessoas sobre trilhos em seus municípios. Não investem nem mesmo nas estações da CPTM, ou no contorno delas. Não têm dinheiro para trilhos, mas têm para terminais de ônibus, corredores de ônibus, estações rodoviárias, etc. Com a proximidade das eleições municipais, nosso sindicato encaminhou enquete a 15 possíveis pré-candidatos à prefeitura de São Paulo, cuja participação tem espaço garantido no blog São Paulo TREM Jeito.  A questão básica da enquete é a seguinte: como prefeito, vai investir em trilhos com receita do município ou continuará cobrando e reclamando do governo do Estado? Até o presente momento apenas dois responderam.

É um contrassenso os paulistas pagarem pelo transporte de pessoas sobre trilhos na capital e na Grande São Paulo, como também é um contrassenso o Estado de São Paulo ser o maior contribuinte da União, e não receber quinhão compatível com o que paga, de modo a ajudar na urgente solução sobre trilhos para os contribuintes de São Paulo e da Grande São Paulo. Tal reconhecimento, entretanto, não significa aceitarmos o jogo das informações imprecisas, vagas e evasivas do secretário.

Reclamam, e com razão, da poluição sonora, visual e atmosférica por conta do excesso de automóveis, motos, caminhões e ônibus, mas incapazes de ampliar os serviços sobre trilhos – não poluentes –, e dizem que nenhuma solução razoável é possível antes de 2014 ou 2018. Anos cabalísticos? Não! Eleitorais.

Oposições, é claro, aparecem apenas nos mesmos anos, posto que eleitorais. Enquanto políticos e “especialistas” cacarejam em seus ninhos, usuários vão vivendo de promessas.  “Tenham esperança, dizem, pois tudo já foi pior”.  Ao invés de olhar para frente, o usuário é encabrestado pelos ilusionistas, volta-se ao passado, conforma-se com o presente, e apenas aposta nas promessas vagas do futuro.

Dizem que herdaram um sistema ferroviário desmantelado. Diante dessa afirmação, entretanto, não gostam de ser lembrados de que estão no comando faz tempo, e que não se trata de uma herança de ano, mas de década. Oportunista, a oposição cobra o mesmo, mas não gosta igualmente de ser lembrada, que também pouco ou nada fez com o que herdou, no plano federal, e também por mais de uma década. Resumo: roto falando do esfarrapado.

Em questão de poucos meses, as falhas e acidentes - sempre atribuídos à condição humana dos trabalhadores ferroviários são agora, – e finalmente, – apontados como falhas sistêmicas. Pobre deste sindicato, que sempre afirmou que os problemas não eram pontuais, mas sistêmicos, que falhas humanas existiam, mas na cabeça da empresa e do governo, pela falta de visão e de ação estratégica. Hoje, diante do evidente – e não mais tendo a quem culpar e a quem cortar, exceto se na própria carne -, saem com o absurdo dos absurdos: falhas existem e vão continuar existindo.  “Normal”, “aceitável”, “dentro dos parâmetros”. Querem, agora, nos fazer crer que existem falhas e falhas, diferenciadas pelo tempo de reparo. Oremos todos para que esse conformismo não seja adotado pelos serviços aéreos e de saúde. “Ora, mas só caíram dois aviões neste mês”. “Mas só morreram três pacientes por erro médico nesta semana”.

Quando dissemos que trens novos não se faziam acompanhar de investimentos correspondentes na infraestrutura ferroviária, falamos sozinhos. Hoje se fala em substituir a rede aérea, e em construir novas subestações de energia. Não estávamos delirando, portanto. Pois bem, continuamos afirmando: terceirizar manutenção de trens é um equívoco e temos sérios problemas com sinalização e comunicação. Como são coisas que as pessoas desconhecem - e não estão explicitadas aos olhos -, ficarão no esquecimento por mais tempo, até a desventura de um acidente, onde não será tão fácil culpar o maquinista ou funcionário do centro de controle operacional.

Falam em metrô e em monotrilho, mas não muito em trens, e absolutamente nada em VLTs. Motivo? Gostam dos mais caros, em detrimentos dos mais baratos. Só por isso? Não! Metrô anda sob a superfície e monotrilho bem acima dela, e isso é conveniente para que as coisas no plano da superfície fiquem exatamente como estão, isto é, sob o completo domínio dos pneus, onde o dinheiro público é injetado – e sem fim – para atender aos interesses individuais e privados.

Estão realizados porque reduziram o número de pedestres mortos no trânsito, mas continua a pequena proporção das calçadas em relação ao espaço público das ruas e avenidas para os veículos sobre pneus. Demagogos, como de costume, incentivam as bicicletas, falam em ciclovias, mas em lugares e bairros nobres, onde é possível dar visibilidade (a quem interessa) à “nova geração” de transporte. Ecológico e saudável, dizem. Não fazem, entretanto, ciclovias para o exército de ciclistas por falta de opção, que saem dos bairros para trabalho, e morrem disputando espaços com automóveis, ônibus e caminhões nas incontáveis avenidas das periferias.

O amigo do ciclista é o trem, cujas estações (ao menos em tese) comportam bicicletários. A CPTM tem apenas 20 em todas as suas linhas. Amigo de ciclista e pedestre é o VLT urbano. Como, entretanto, VLT ocupa espaço na superfície, que “por acaso” é o mesmo ocupado por automóveis e ônibus, nem pensar. Corredores segregados para ônibus, sim. Para VLTs, não.

O zelo maior de uma operadora de transporte – em especial de pessoas – “deveria ser” a segurança. Pois bem: qual é minha surpresa ao ler, em recente publicação do Ministério Público de São Paulo, que a Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo, responsável pelo inquérito civil que apura as falhas nos serviços da CPTM, firmou um compromisso com a empresa, para que ela – CPTM – realize uma campanha institucional com o tema “viajar com segurança”, visando “conscientizar os usuários” de como se comportar em situações de normalidade e de anormalidade. O que, na condição de leitor da notícia, devo concluir por isso? Que as falhas da CPTM se devem aos desvios de comportamento dos usuários?

Que um número expressivo de usuários da CPTM tem comportamento de gado não temos nenhuma dúvida: não deixam passageiros embarcados descerem antes de invadirem composição porta à dentro, não retiram suas mochilas das costas nem mesmo com os carros lotados, ouvem música em alto volume, viajam encostados nas portas, colocam os pés sobre os assentos, riscam os vidros (sic) dos trens, grafitam, pregam a bordo, vendem a bordo, etc. Isso sem contar os brigões, ladrões, assediadores morais e sexuais, os “espaçosos”, etc. Tudo isso, entretanto, pouco ou quase nada tem a ver com as falhas.

Câmeras instaladas nos carros – nos trens novos – não são monitoradas online. Seguranças privados andam de um lado para outro nas plataformas, mas não têm nenhuma ação conscientizadora e tampouco corretiva frente aos “abusados”. Não existem seguranças dentro dos carros para assegurar que as regras de boas condutas sejam respeitadas. Em resumo: na viagem os passageiros ficam entregues a própria sorte.

Distância e desnível de altura entre plataformas e portas em boa parte das estações representam risco. Quando trens quebram ao longo do trecho, passageiros são obrigados literalmente a “pular” do trem para o leito da via, sem nenhuma medida de segurança. Neste episódio escandaloso – e que não é raro – ficam literalmente entregues a solidariedade uns dos outros. A CPTM não tem reboque para conduzir a composição avariada até a próxima estação. Caminhando pela via, em marcha de desamparo, podem ser atropelados por outra composição, uma vez que o sistema de comunicação dos trens entre si, e deles com o Centro de Controle Operacional, não é completamente confiável.

Interessante conscientizar os usuários sobre como viajar com segurança? Sim, mas apenas no que depende da governabilidade deles sobre a viagem segura. Quem, entretanto, está conscientizando a CPTM sobre a governabilidade dela na viagem segura, e que representa a quase totalidade das ações? Ninguém, e essa era a expectativa presumível da ação do Ministério Público, infelizmente frustrada.

Por que não investigar prática comum na CPTM, de determinar aos maquinistas que desativem o sistema automático de bordo (ATC) - que controla a velocidade das composições -, e prossigam viagem no modo manual, apenas para “ganhar tempo” de intervalo entre os trens?  Por que não investigar, na CPTM, os trens que desaparecem das telas dos controladores do CCO (Centro de Controle Operacional), por conta de problemas nos aparelhos, cabos ou mesmo softwares envolvidos no sistema de sinalização? Por que não investigar o absurdo da CPTM determinar a remoção dos sensores de descarrilamento de todos os trens novos da empresa? De onde o sindicato saiu com essas? De relatórios da empresa, além de denúncia de funcionários na ativa e dos demitidos.

A superficialidade ou ausência de investigação não tem sido diferente nas demais falhas, e principalmente nos acidentes. Os familiares dos cinco ferroviários mortos em serviço – na via -, e acusados de responsáveis pelas próprias mortes antes mesmo de qualquer investigação, continuam a espera do nada.  A delegacia especializada na investigação foi extinta por decreto do governador, e não se sabe dizer qual outra, afinal, está conduzindo os trabalhos.  Os acidentes são como uma batata quente, cuja investigação é jogada de mão em mão, certamente até esfriar, para cair no esquecimento e também ser sepultada. Não é diferente com as falhas. A CPTM abre sindicância para todas, com responsáveis e datas de conclusão, mas os resultados nunca são conhecidos. Não tem sido diferente com os inquéritos sob a responsabilidade dos poderes públicos.

Diferente dos modais rodoviários, aeroviários e marítimos, não existe no ferroviário - em especial no de passageiros -, nenhum órgão independente com missão de fiscalizar e disciplinar. A ninguém ocorre que uma única composição transporta mais vidas do que um navio de passageiros, alguns aviões e dezenas de ônibus. A CPTM fiscaliza e disciplina a si própria. Eis um quadro que, enquanto não mudado, continuará alimentando as falhas e os acidentes, bem como a mais completa impunidade dos verdadeiros culpados, e não dos bodes expiatórios jogados aos leões (mídia e opinião pública) para tirar o assunto de foco. O sindicato tem recomendado a obrigatoriedade da CPTM estar no mínimo sob o controle de uma certificadora externa para os quesitos qualidade e segurança, mas é uma ideia que não encontra eco. Eis uma sugestão para os deputados do Estado de São Paulo, uma vez que também eles não têm nenhuma ação fiscalizadora sobre a CPTM.

Enquanto finalizava este texto, lia a explicação do secretário dos Transportes Metropolitanos para a falha do dia na CPTM. Sabotagem. Não vale a pena gastar palavras sobre a nova “isca”, por uma razão muito simples: a responsabilidade objetiva pela fiscalização e preservação da via é da CPTM. Se vândalos ou sabotadores estão agindo, é porque a CPTM não está sendo capaz de cumprir sua obrigação objetiva de impedir possíveis ações externas.

Realmente: é tudo surreal.

Tudo o que aqui está sendo apresentado, de forma breve, já foi exaustivamente tratado no blog São Paulo TREM Jeito, mantido pelo sindicado. Um blog despretensioso, criado em 16 de janeiro de 2011, mas que acumula, hoje, a marca de 173.000 visitas de páginas.

Não tendo nenhum vínculo ideológico ou partidário, nosso sindicato continua em sua trajetória independente de tudo e de todos: informa, questiona, polemiza, debate, rebate, denuncia, propõe, e mantém suas portas abertas a quem quer que queira seriamente discutir o presente e o futuro do transporte de pessoas sobre trilhos em São Paulo.

Éverson Paulo dos Santos Craveiro – presidente do SINFERP (Sindicato dos Ferroviários de Trens de Passageiros da Sorocabana)