A entidade recebeu várias mensagens em defesa da delegada, sob o argumento de que em outros países também ocorre superlotação, mas que nem por isso os passageiros brigam, reforçando a crença de que paulistano é mesmo mal educado.
Bem, parece oportuno revermos essa mania de justificar nossos problemas pelo fato de existirem também nas nações “adiantadas”. Esse tipo de pensamento aponta para uma conclusão que não interessa a nós, nacionais. Quando não somos tão bons quanto eles, reconhecemos que precisamos melhorar. Quando somos tão ruins quanto eles ficamos resignados e até satisfeitos com a posição no ranking.
Um tipo de pensamento com resquícios coloniais, e não raro encontrado no ranço de quem se imagina no time da elite. “Brasileiro reclama de tudo”. “Falta educação a essa gente”. “O povo tem o que merece”. Essas falas partem de quem se imagina nobre, que não faz parte do povo e tampouco “dessa gente”. Talvez seja assim mesmo, mas o problema é que muitas vezes esse pensamento esta norteando ações de pessoas que ocupam cargos na administração pública.
Vamos aos fatos.
1. A cidade de São Paulo está orientada para o transporte individual, privado e sobre pneus. O último apelo para a sobrevida desse modelo é a onda do ciclismo.
2. Para o mundo individual e privado dos pneus criou-se toda uma infraestrutura de perpetuidade, comodidade e convivência “educada”: ruas, avenidas, viadutos, túneis, semáforos, placas sinalizadoras, locais para estacionamentos, etc. Em resumo, se os veículos sobre pneus transitassem sem o comando de humanos, não seria difícil afirmar que a sociedade desses veículos já está toda ela regrada.
3. Os pedestres são uma descoberta recente na cidade de São Paulo, e agora com direito a faixas para travessia, e também com semáforos próprios. Isso foi feito para organizar o trânsito dos pedestres, mas com base no modelo do trânsito dos veículos sobre pneus, e para facilitar a convivência deles com os pneus. Ou seria dos pneus com eles?
4. Enquanto ruas e avenidas são beneficiadas por asfalto que parece um tapete, as calçadas são irregulares, e sobre elas estão os postes, as lixeiras e toda uma sorte de “obstáculos” que dificultam o trânsito dos pedestres. Em resumo: tudo o que não pode atrapalhar o trânsito de veículos, vai para a calçada atrapalhar o trânsito dos pedestres.
5. Do mesmo modo que o tráfego de veículos seria o caos, uma barbárie, sem as regras e ordenamentos do trânsito, em certas circunstâncias o mesmo ocorre com o tráfego de pedestres. Quero, porém, destacar esse detalhe: em certas circunstâncias.
6. Para quem anda a pé pelos calçadões do centro da cidade de São Paulo, é fácil notar que aquele enorme contingente de pedestres tem um elevado grau de educação. Como um exército de baratinhas tontas, se movimentam sem regras nas mais diversas direções, e nem por isso colidem uns com os outros, batem boca ou brigam. Algumas exceções? Sem dúvida, mas exceções. Não sei se poderia dizer o mesmo do mundo dos pneus sem regras, e sem as punições das multas e apreensões de veículos.
7. Quando é necessário disciplinar o trânsito dos pedestres, como no caso de acesso deles aos transportes coletivos, mais uma vez nota-se muita educação, desde que os gestores desses serviços tenham inteligência e sensibilidade para criar “arranjos ambientais” que assegurem conforto e segurança para a mobilidade das pessoas.
8. Não é sem razão que embarque e desembarque nos ônibus são feitos por portas diferentes.
9. Não é sem razão que embarque e desembarque nos aeroportos são feitos por lugares diferentes.
10. Não é sem razão que embarque e desembarque nas rodoviárias são feitos por lugares diferentes.
11. Não é assim, entretanto, que as coisas acontecem nos trens do Metrô, e muito menos nos trens metropolitanos. Apesar de neles se movimentarem aproximadamente 7,5 milhões de pessoas por dia, contingências ambientais muitas vezes caóticas são geradoras de insegurança e de desconforto. Não é, portanto, a falta de educação dos passageiros que explica boa parte das “desinteligências”, mas sim a falta de planejamento (e não de condições materiais) dos que têm a obrigação de prever e prover melhores condições de mobilidade. Afinal, a administração dos espaços de mobilidade nas estações e trens está sob a responsabilidade dos gestores, e não dos usuários. É por essa razão que são chamados de usuários.
12. Aos administradores do Metrô resta a explicação de pouco espaço físico para segregar embarque e desembarque, a exemplo de rodoviárias e aeroportos. Aos dos trens metropolitanos nem mesmo essa explicação é possível, pois o que não falta à ferrovia, pelo fato de circular no nível da superfície, é espaço físico a ser explorado.
13. Mesmo que não seja necessário chegar a tanto, é ridículo oferecer aos usuários escadas comuns para que por elas subam e desçam às plataformas. Evidente que isso é fator mais do que suficiente para gerar desconforto, insegurança e eventuais atritos entre os usuários. Além de conforto e segurança, as escadas rolantes, por exemplo, servem de sinalização. Ninguém vai descer por uma escada rolante que sobe.
14. Como pretender, nos trens da CPTM, que as pessoas sejam “educadas”, se elas não sabem (como no Metrô) onde ficam as portas das composições que estacionam? Como não há indicação de uma direção única para a saída (direita ou esquerda) para os que desembarcam, saem por qualquer lado, entrando em choque com os que entram, pois também desconhecem os movimentos dos que saem. Como pretender nessa condição de salve-se quem puder que o “brasileiro”, o “povo”, essa “gente” se encontre? Nesse cenário (e eu poderia citar dezenas de outros exemplos), o paulistano é educado até em excesso.
15. Passou da hora de administradores e usuários de transporte de pessoas sobre trilhos em São Paulo reverem conceitos. O problema não é apenas a superlotação, e tampouco a “cultura do povo”. Tem muita coisa que pode ser melhorada (sem a necessidade de fortunas), e que depende apenas de revisão de hábitos e costumes de administradores.
Rogério Centofanti – Consultor do SINFERP