Em maio de 2000, o jornal Movimento, do Sindicato dos Ferroviários da Sorocabana, publicou entrevista exclusiva com o jornalista Aloysio Biondi, que em 1999 havia lançado o livro “O Brasil privatizado”. Vale a pena reproduzir.
Sindicato da Sorocabana - Você que é conhecidamente um defensor do patrimônio nacional e um brigador contra as privatizações: como vê a privatização da FEPASA?
Biondi - Só para começar, eu não sou contra as privatizações em princípio. Quero deixar claro que não há nada de ideológico nisso. A grande briga tem sido – como a de milhares de sindicalistas e de brasileiros – pela forma como a privatização vem sendo feita no Brasil. Todo mundo sabe que está havendo uma doação do patrimônio e, em muitos casos, é como se você oferecesse a alguém a compra de sua casa, e ainda desse o dinheiro para o comprador pagá-la.
O caso da FEPASA foi um dos que mais me deixou indignado. A FEPASA tinha onze mil vagões, quase mil locomotivas, 5.000 quilômetros de malha férrea e foi privatizada, doada pela vergonhosa quantia de 260 milhões de reais, dos quais 60 milhões foram pagos de entrada e o resto em prestações trimestrais por 25 ou 30 anos.
Essas condições são totalmente absurdas. Vimos, logo em seguida, os compradores diretos da FEPASA terem empréstimos de mais de 200 milhões de reais no BNDES. O ponto que tentamos colocar é que nenhum chefe de família vende uma casa que vale 100 mil por 10 mil, ou uma casa que vale 10 mil por mil. É o que está acontecendo no Brasil e o que aconteceu na FEPASA. Um patrimônio bilionário arrendado por, na verdade, um desembolso de 60 milhões de reais.
Isso nunca existiu em país nenhum do mundo. Inclusive na questão dos gastos que, como sempre, o Estado vem fazendo para “preparar” a estatal para ser vendida, que é aquilo que todo mundo conhece: os programas de demissão voluntária.
O Estado, o contribuinte, acaba arcando com isso. As reservas para fundo de pensão, para rombos teóricos queàs vezes nem existem. Isto é: acaba desembolsando um fundo que foi feito com pretexto de atender às futuras aposentadorias. Mesmo no caso de bancos, por exemplo, ainda se tem uma reserva de mercado, ou seja, o Estado se compromete durante cinco anos a continuar operando com o mesmo banco. O pagamento de funcionários, na maioria dos casos - como o do BANERJ no Rio -, tem que ser feito no mesmo banco. O banco que compra tem a vantagem de não ser obrigado a aplicar todo o dinheiro da caderneta de poupança em financiamento imobiliário; o depósito compulsório que ele teria que fazer no Banco Central também não precisa ocorrer durante algum tempo.
Então, a privatização no Brasil, é realmente de indignar. No caso da FEPASA, sabendo a prioridade que existe no transporte ferroviário em outros países, pegar 5.000 quilômetros de malha e entregar como privado nessas condições continua sendo inadmissível para mim. Espero que a Assembleia Legislativa, que montou uma CPI sobre pedágio, acabe fazendo uma CPI a respeito de todas as privatizações em São Paulo.
Sindicato dos Ferroviários da Sorocabana - Desses 5.000 quilômetros a que você se refere – com certeza o número deve estar próximo disso – você sabia que a tendência é ainda reduzir essa malha, apenas mantendo linhas consideradas pela concessionária como “economicamente viáveis”?
Biondi - É, a gente vê. O transporte de passageiros foi suprimido na esmagadora maioria dos casos e tem um detalhe: eu li uma entrevista com o ex-secretário de Transportes, Plínio Assmann, no Estadão (jornal O Estado de São Paulo), há dois ou três anos atrás. Ele falava do problema do ramal de Santos, que está transportando apenas 5% da carga. Quando foi construído pelos ingleses, era o ramal o trecho ferroviário mais lucrativo do Brasil, com maior volume de carga. Plinio Assmann disse ainda uma coisa muito interessante. Que a preferência pela rodovia tinha uma explicação: era uma sonegação permitida pelo governo, na verdade. Quando a carga ia pela ferrovia, a nota fiscal ficava retida. Quando a carga vai pela rodovia, só é necessário mostrar a nota para o guarda do posto fiscal e não tem nenhum carimbo. Isso permite quer essa nota seja reutilizada várias vezes. No fim das contas, você tem uma sonegação.
O secretário de transportes do governo Mário Covas, ou do governo do Estado – afinal, isso também vem de mais tempo – dizendo que a preferência pela rodovia é meramente porque na rodovia a sonegação é permitida. Ora, é esse o país em que a gente vive. A ferrovia perdeu carga, claro. Mas, em São Paulo, foi quem abriu caminho, fronteira, no ciclo do café principalmente. É evidente que houve mudança na economia: algumas regiões não têm mais o volume de carga que apresentavam no passado. Porém, sabemos que esses planos de ir fechando não têm nada a ver com o potencial que realmente a carga ferroviária tem. É tudo uma questão de política de transportes.
Sindicato dos Ferroviários da Sorocabana - Você não acha que, passando para o setor privado, fica impossível falar de política de transportes, sendo esse, talvez, o reflexo do que estamos presenciando hoje?
Biondi - Pelo menos foi o aspecto que alguns técnicos expuseram antes da privatização da FEPASA. Colocavam a importância da FEPASA como acesso ao MERCOSUL, inclusive a integração da malha ferroviária como um todo. Pelos planos do governo – que, no fundo, achava que um grupo só - o do Steinbruck -, ia ficar com tudo, haveria essa integração. Inclusive os porta-vozes da VALE estão sempre anunciando que, além da mineração, outra prioridade do grupo, agora, é mesmo transporte. Só que estamos vendo, também, que a capacidade de investir do grupo privado acaba dependendo de muitas variáveis. A Vale do Rio Doce, no ano passado (1999) teve que reduzir os investimentos em todas as áreas. Inclusive vendeu a usina de alumínio para um grupo norte-americano por 600 e poucos milhões, e isso foi pouquíssimo citado. O grupo comprador era pequeno e, na verdade, não tinha dinheiro. Então, é evidente que um serviço público como ferrovia o Estado tem que bancar em muitos momentos. É um serviço público e o nome já está falando.
O Estado tem que bancar as linhas pioneiras. Basta lembrar o Lloyd (navegação), quando o país precisava abrir linhas para a África – uma política de transporte, com esse nome, onde você vai ter que atender à situação das ferrovias e também ao interesse público. Sabemos que os compromissos assumidos nas concessões não previram isso na verdade: a capacidade de investimento de um grupo privado, pelo menos no Brasil. É uma crítica que foi feita por técnicos, não se estabeleceu nada às claras. A política de transporte se estabeleceu na quilometragem, na carga por quilômetro. Concluímos que essa política de transporte foi prejudicada.
Sindicato dos Ferroviários da Sorocabana – Uma das choradeiras da FERROBAN, por exemplo, que é a sucessora da FEPASA – pelo menos enquanto operadora – é que ela não está com muito caixa para investir nos trabalhadores ainda que quisesse, pois tem que corrigir toda essa situação sucateada que encontrou pelo frente. Como você vê isso?
Biondi - Bom, sabemos que em termos de trilhos, dormentes e etc., em alguns trechos você tinha realmente uma malha precisando de remodelação. Vi uma matéria dessas vergonhosassobre a privatização no Brasil, no jornal O Estado de São Paulo, na qual aparecia a foto de uma locomotiva sucateada, dando a ideia de que eles bateram na tecla de que tudo estava sucateado. Porém, o próprio texto da reportagem do Estadão dizia que 10% dos vagões estavam sucateados. Quer dizer, eram 11 mil vagões e 10 mil em condições de rodar. Ora, honestamente... e voltamos para aquela pergunta de trás.Todo mundo sabe que não tivemos uma política de recuperar carga para a FEPASA, até por ordem do “privatiza-não privatiza”, nos anos que antecederam a privatização. O presidente do grupo privado pega esse patrimônio enorme, desembolsando uma ninharia com empréstimo do BNDES – acho que demais de 200 milhões – logo após a privatização e alega não ter recursos?
Sindicato dos Ferroviários da Sorocabana – O senhor deve saber que, antes da privatização da FEPASA, os ferroviários trocaram uma garantia de emprego por um plano que incentivava a demissão. Hoje, a FERROBAN, sucessora trabalhista, está tentando novamente fazer com que o ferroviário abra mão dessa indenização em troca de um plano de aposentadoria. O que você diria ao ferroviário que se encontra nessa situação, isto é, já trocou garantia de emprego por indenização, e agora fica nas mãos de uma empresa que quer trocar a indenização por outro projeto futuro para eles?
Biondi - Quanto a proposta da FERROBAN em si, como em outros casos, para que possa ser contestada, é questão de uma assessoria jurídica, pois não sou um especialista. Nos contratos de concessão – nos editais – os preços solicitados eram baseados no fluxo de receita que a empresa deveria ter no futuro, e qual seria, também, o fluxo de despesa. Resumindo, quanto ela iria ganhar e perder ao longo dos anos. Certamente a FERROBAN ofereceu um preço ridículo pela FEPASA: R$ 260 milhões num patrimônio de muitos bilhões de reais, e somente R$ 60 milhões de desembolso.
É evidente que no cálculo do preço mínimo da concessão entrou uma previsão de despesas com possíveis demissões ao longo de 30 anos da concessão. E, no preço que ela ofereceu, certamente já estava embutido o custo dessas indenizações e dessas demissões.
Sindicato dos Ferroviários da Sorocabana: Portanto, seguramente, isso não deve ser uma novidade para a FERROBAN...
Biondi: Não, isso não é novidade. Deve estar incluído, pois tudo isso é fluxo de caixa. Como no caso das telefônicas, por exemplo, você teve previsões de despesas absurdas, despesas de 8% de comercialização, onde havia tanto comissão de vendedor como gastos com propaganda. A gente até entende por que as telefônicas viraram moda dos anunciantes no país. Por isso que jornais de São Paulo ficaram simpáticos a elas, inclusive, mas isso foi tirado do preço das telefônicas. No caso da FEPASA, é evidente, trata-se de um lance de concessão: não é compra como no caso das telefônicas. Porém, o fluxo de quanto ela arrecadaria e quanto ela gastaria ao longo dos anos certamente é conhecido. Qualquer empresa faz isso! É óbvio, ela previu quanto gastaria com novas demissões e deve ter calculado que iria demitir 10%, 15% ao longo do tempo e que gastaria “x”.
Eu acho que a briga pela revisão do processo de privatização, pelo menos nas condições em que ele tem sido feito, continua a valer a pena. Os jornais noticiam muito mal tudo, mas temos dois fatos - agora desse mês de janeiro (2000) -, mostrando que ainda existe caminho para rever privatizações e combater as distorções. No caso do governador Itamar Franco, tinha aquela falsa privatização da CEMIG, na qual o grupo norte-americano comprou 33% de controle e passou a mandar na empresa. Como aconteceu com a LIGTH no Rio, a ELETROPAULO em São Paulo, e o governo continua com a maioria das ações. No entanto, várias viraram donas para todos os efeitos, inclusive para decidir dividendos, remessas, compra de material lá fora. Em resumo, o Itamar considerou esse contrato lesivo, que todo mundo sabia que era lesivo aos interesses do Estado. Ele mudou isso, houve aquele “carnaval”, o grupo norte-americano foi para a Justiça e perdeu. Agora, em janeiro (2000), ele recorreu e perde de novo.
É evidente que o processo de privatização está cheio de ilegalidade. Ilegalidade.
No Rio, que também foi muito pouco noticiado, o Garotinho já disse que no processo de venda do BANERJ – isso está no livro – só para vender o fundo de pensão dos funcionários, o governo do estado tomou empréstimo de R$ 3 bilhões e vendeu o banco por R$ 300 milhões. Dez vezes menos. Só! Nesse ponto o Garotinho, na primeira auditoria, acusou um prejuízo, só com a venda do BANERJ, em torno de bilhões.
Acho que os ferroviários agora têm que entender, nós temos que entender: o patrimônio é público, patrimônio coletivo. Ele, na verdade, pertence a cada um de nós e isso não é uma forma de falar. No fundo, é como se você vendesse a FEPASA por R$ 10 milhões e distribuísse entre os paulistas – caberia uma quantia para cada um. O patrimônio é coletivo: o governador não é dono da coisa pública, o presidente da república não é dono da coisa pública.
No caso do Rio, o Garotinho pediu a um órgão que é ligado à UFRJ um estudo sobre todas as privatizações. O relatório saiu em janeiro. Está claro, lá, que o Estado foi lesado, que as coisas foram vendidas por um preço ridículo. Em São Paulo também, quando foram formadas as CPIs – cinco ao todo – sendo uma delas a do pedágio. Nem a Folha (de São Paulo) nem o Estado (de São Paulo) deram notícia das CPIs. Eu vi no Diário Popular. Eles chegam a esse ponto: pedágio, aquela coisa que atinge até os assinantes dos grandes jornais, que é a classe média, até isso foi omitido para que o público não soubesse que há uma reação organizada contra as distorções da privatização. Então, acho que seria interessante que os ferroviários, além de brigarem pelos seus próprios direitos, não abandonassem a luta pela revisão desse processo, que aquilo deve ser revertido. Tomara que pelo menos uma distorção seja corrigida.
Agora, está acontecendo exatamente aquilo que se temia: a Vale do Rio Doceimpediu os concorrentes de usarem suas ferrovias para transportar acima de maior volume, de determinada tonelagem de minério, se fossem para o mercado que a Vale também atende. Com isso, está estrangulando as concorrentes, como as empresas de televisão temiam, num determinado momento, que a Globo comprasse a EMBRATEL e depois não desse sinal de satélite para as concorrentes. Então, acho que esse processo vai ter que ser corrigido e para começar, deveria haver uma reação sempre contra as novas privatizações, pelo menos não deixar, daqui para frente, que absurdos e aberrações se repitam e, ao mesmo tempo, fazer a revisão do que aconteceu no passado. O ponto de partida é não permitir que essa indecência continue ocorrendo.