Em vários cantos do país temos acompanhado a disputa entre BRT eVLT como escolha de modal para atender a demanda de transporte urbano, e como promessa de solução para a questão do trânsito.
Três localidades têm sido palcos de muitas disputas – Santos (SP), Cuiabá (MT) e Salvador (BA).
Em Santos (SP), pesquisas realizadas junto à população indicam a preferência dos usuários pelo VLT. Um dos motivos da preferência é o fato da cidade ter uma frota de bondes ainda ativa, da qual os santistas muito se orgulham. Pode-se, portanto, dizer que o conhecimento e a convivência com um meio de transporte sobre trilhos dentro da cidade facilitam a opção, pois há uma cultura dos trilhos.
Em Cuiabá (MT) a disputa tornou-se uma verdadeira guerra campal que envolve governos, agências e a própria população. Pelo andar da carruagem, a decisão se encaminha para uma saída amenizadora, isto é, um pouco de VLT e um pouco de BRT. Que seja. Cuiabá não tem a cultura dos trilhos, e a inovação deve ser estranha para muita gente.
Salvador (BA) fica entre a experiência de Santos e a de Cuiabá. Convive com a história escandalosa de um metrô que não se define, que não se conclui, mas que já consumiu recursos financeiros altamente expressivos. Tem implantado um trem metropolitano que bem ou mal serve de parâmetro às pessoas, embora, ao que parece, frustrado perto da expectativa de um metrô, sempre tomado como símbolo de progresso e de modernidade, seja lá o que por isso se entenda. É o novo, mas adotado em outros lugares do país e, portanto, digno de credibilidade. Quanto ao VLT, diz o prefeito que sua implantação iria contrariar a “cultura local”, habituada aos ônibus (BRT), como em toda parte do país.
Em nossas andanças e discussões sobre transporte sobre trilhos, temos notado o seguinte: a ausência de uma cultura dos trilhos é bastante ampla, inclusive dentre públicos esclarecidos. A formatação mentalizada é sempre mais ou menos a seguinte: metrô (por isso entendendo um trem subterrâneo) é o símbolo máximo de modernidade, os trens metropolitanos refletem a expressão do subúrbio, da periferia, e não vai muito além. Os urbanos não imaginam o trem metropolitano como um meio de transporte para eles, e os suburbanos têm o metrô como aspiração de consumo, como um tipo simbólico de ascensão social e econômica para eles. Todas as classes sociais, entretanto, não têm a menor idéia do que seja um VLT, e ficam indignadas quando se diz que representa uma versão moderna do bonde. Monotrilho, então, nem pensar. Muito futurista e coisa de parque temático, na concepção delas.
Diante dessa situação imaginária, querem metrô e, se não atendidas, regridem para os únicos referenciais de cultura que conhecem – o ônibus, os carros e as motos. Muito governantes sabem disso e fazem uso dessa distorção para impor seus desejos de investimentos, isto é, mais ruas e mais ônibus para todo mundo, mesmo sabendo que não resolvem as questões do transporte, e menos ainda do trânsito. Alguns, entretanto, não sabem disso, mas preferem não apostar no novo. O que TODOS os governantes têm em comum, entretanto, é o hábito da desinformação. Discutem com técnicos e especialistas em gabinetes, mantendo a população usuária na mais completa ignorância de seus estudos e decisões. Tem sido igual com o TAV, o trem de alta velocidade entre São Paulo e Rio de Janeiro.
A implantação de um VLT é mais cara do que um corredor de BRT, em virtude da infraestrutura necessária para sua movimentação, e esse tem sido o argumento fatal dos governantes. Não bastasse isso, temem que a experiência não seja bem sucedida (uma vez que desconhecida no país), e isso reforça a tomada de decisão quase sempre conservadora.
Dentre nós, a ausência de cultura dos trilhos - ou a sua deformação - tem passado até mesmo por um permeio classista que pouca gente consegue enxergar e discutir.
Trens metropolitanos, metrô e VLT não são meios de transporte descartáveis, e tampouco sujeitos a lógica do modelito de consumo, isto é, trocados todos os anos como os veículos sobre pneus. Habituadas a cultura dos pneus, as pessoas nem mesmo sabem que um veículo sobre trilhos é projetado para suportar 30 anos de uso. Nessa medida, ganham os BRTs, que podem renovar frotas como se fossem automóveis.
Não tem sido fácil convencer usuários e políticos que os veículos sobre trilhos representam a solução para a questão do transporte e do trânsito nas grandes cidades, embora, paradoxalmente, ninguém tenha dúvida quanto a isso.
Mais do que construir ou reconstruir uma cultura ferroviária, entretanto, se faz necessário desconstruir uma cultura rodoviária.
Éverson Paulo dos Santos Craveiro - vice-presidente do Sindicato dos Ferroviários da Sorocabana – blog São Paulo TREM Jeito